sexta-feira, 2 de março de 2012

Joga a rede, Rainha.

Desde muito pequena tenho o hábito de trazer para as palavras o que meus olhos registram, o que meu corpo sente, o que minha alma deduz. Aos cinco anos, no auge da descoberta delas - as donas do meu pensar - escrevi um caderno de poemas cujo título, que contou com uma ajudinha da minha mãe, era "O primeiro livro de uma pequena escritora". A capa continha um desenho bem feinho de um pinto saindo de dentro de um ovo - bem, há de haver sinceridade: não nasci com o dom dos traços firmes e expressivos, minha intimidade sempre foi mesmo com as palavras. Porém, ousadia nunca me faltou, verdade seja dita. E esse livro reunia pedacinhos desta ousadia e fatias grossas do meu olhar de menina.

Hoje, 22 anos após o nascimento de "O primeiro livro de uma pequena escritora", caminhando na orla do bairro que escolhi para viver e acolher sonhos e medos, me deparei com uma cena indescritível. De uma beleza mágica, de uma sabedoria incrível, de uma delicadeza sem tamanho. E caminhei cerca de duas horas pensando como poderia colocar em palavras aquilo que vi, que senti, que cheirei, que escutei. Tentei resgatar todos os anos de faculdade. Sim, como disse ao princípio, as palavras são as donas do meu pensar, então nada mais natural do que elas terem escolhido a minha profissão: jornalista. Mas, nada. Recorri, então, à experiência de cinco anos escrevendo matérias para um jornal local. Lead perfeito. Abre perfeito. Coordenadas bem elaboradas. Mas, não. Não foi o suficiente para me ajudar a transcrever aquela cena. Pensei, bem, uma máquina ou um simples celular com câmera resolveria o problema. Porém, é mais do que óbvio que não resolveria!

De repente, quando já havia desistido de tentar descrever a cena e decidi - de forma bem egoísta - guardá-la só para mim, lembrei do meu livrinho com capa de pinto saindo do ovo. E, plim! Um estalo. Resolvi recorrer a ele, à simplicidade das palavras que podiam ter uma menina de cinco anos de idade. E é munida da minha criança escritora que descrevo o que vi, aqui no Rastros de Inquietude ou O Segundo Livro de uma Ainda Pequena Escritora:

Caía a tarde.
O céu era uma verdadeira aquarela,
Entre raios de sol e nuvens desenhadas.
O ponto de ônibus estava lotado de trabalhadores e trabalhadoras,
Todos cansados ao final de mais um dia.
A calçada era um ir e vir de pessoas dispostas a cuidar de si,
E inseguras para cruzar o olhar com os outros que, assim como elas, caminhavam.
De repente.
Algo vindo lá debaixo,
Da areia.
Das águas do mar.
Do poder da Rainha.
Provocou uma pausa.
Bicletas se encostaram.
Pés que caminhavam, frearam.
Senhoras elegantes que iam atravessar a rua, recuaram.
O rapaz que aproveitaria o sinal fechado para lavar um vidro, recuou.
O vendedor de balas, volteou-se.
A menininha de vestido azul puxou a saia da mãe, ambas voltearam-se.
E lá.
Lá debaixo, onde mora a areia.
Onde mora o mar.
Onde mora a Rainha.
Muitos homens descalços e sem camisa esticavam uma imensa rede.
Para jogá-la ao mar.
Tendo a aquarela do céu
Como testemunha.
Tendo a senhora elegante, o ciclista, o atleta, a menininha, o vendedor
Como testemunhas.
Tendo o tempo
Como testemunha e cúmplice.
Uma pausa.
Uma linda e verdadeira
Pausa no dia.

Um comentário:

Giulia disse...

Eu sempre soube que minha pequena escritora seria uma grande escritora, com essa alma cheia de sensibilidade e luz, o que mais poderia ser?